Universo do Canto Falado

Universo do Canto Falado

“Universo do Canto Falado” pode até ser o álbum de estreia de RAPadura, mas quem acompanha a carreira do rapper cearense sabe que ele está na cena há muito mais tempo, com uma mixtape lançada –“Fita Embolada do Engenho” (2010), que traz o hit “Norte Nordeste Me Veste” e diversas parcerias com gente como O Rappa, Rashid e Edi Rock. Francisco Igor Almeida do Santos, nome de batismo de RAPadura, nasceu e passou a infância no bairro de Sapiranga (antigo Lagoa Seca), em Fortaleza (CE). Ele entrou para a vida artística através da dança, vencendo concursos de lambada. Adolescente, mudou-se com a família para Planaltina (DF), que na época era uma das cidades mais perigosas do Brasil, e o rap era a expressão cultural da periferia onde morava. “Nunca tinha ouvido rap. Na época, em Fortaleza, o que era o rap do Brasil era o funk do Rio de Janeiro. Não tinha o hip-hop de fato. Com 13 anos, comecei a compor como se já fizesse aquilo a minha vida toda. Foi uma parada incrível, autodidata mesmo”, ele revela ao Apple Music. RAPadura trouxe da embolada a velocidade do seu flow, e do repente a métrica para as suas composições. O rap era proibido na casa de RAPadura, seus pais só foram entender a nova paixão do filho quando ele resolveu buscar referências dentro da própria cultura, dos álbums de brega e forró que o pai tinha em casa. “Recortei esse sample de ‘Eu e Meu Fole’, de Luiz Gonzaga, e criei a música ‘Amor Popular’, que fala sobre a cultura nordestina”, explica o rapper, que gravou um CD demo e, quando voltou da escola, sua mãe estava em casa mostrando o som para os vizinhos. “Meu pai também gostou pra caramba e falou: ‘Tá vendo, isso aí é a nossa cultura, de onde a gente veio. Aí eu gostei. Desse rap eu gostei’. Depois disso, não parei mais.” Após o lançamento de “Fita Embolada do Engenho”, RAPadura passou dez anos colhendo os frutos da mixtape, enquanto trabalhava com calma nas músicas que formariam “Universo do Canto Falado”, ao lado do amigo e produtor Carlos Cachaça. “É o paralelo mesmo do concreto com o imaginário nordestino. É o coco, a embolada, o maracatu, a ciranda. Esse mundo mágico que o próprio repentista traz em sua cantoria”, define RAPadura, que nunca se encaixou em “prateleiras sonoras” e entregou um álbum com 12 faixas – uma delas com participação do BaianaSystem (“Olho de Boi”) –, que formam uma viagem pela música nordestina. “Sentia a necessidade da criação desse universo novo. Se você ouvir ‘Universo do Canto Falado’, vai ver que é outro tipo de sonoridade, totalmente diferente de tudo. Uma coisa que sempre busquei na própria ‘Fita Embolada’.” Abaixo, RAPadura comenta as faixas de “Universo do Canto Falado”: Universo do Canto Falado “Vou recitar o comecinho, para falar a partir disso, que acho muito bonito: ‘Rito artístico, légua tirana, mago interplanetário, na atmosfera profana. Um circo místico, na selva urbana, latifundiário no imaginário da esfera humana’. Tipo, isso traduz muito bem o que é o ‘Universo do Canto Falado’, enquanto as pessoas estão procurando um tipo de alimento, tem um alimento espiritual, da alma, não só do físico, do corpo. Tem um outro universo a ser explorado, até dentro da nossa mente, da nossa imaginação, outras ideias. Às vezes é tão difícil colocar isso no papel, em forma de música, e esse ‘Universo do Canto Falado’ é bem uma parada mística mesmo, meio psicodélica, é o paralelo entre a realidade e a imaginação. É mais ou menos isso que esta música quer passar.” Saga Cega “‘Saga Cega’ conta um pouco da minha vida, da minha história, e que na verdade se confunde com tantas histórias de outras pessoas, outros nordestinos, que saíram lá do interior e foram buscar o seu objetivo. Muitas vezes, passando por várias dificuldades e conseguindo através da criatividade trazer alegria para as pessoas. Retrato todo o tempo que passei longe das minhas filhas, da minha família, na estrada do Rio de Janeiro à Bahia, Espírito Santo, todo canto. Sentindo saudade, sentindo falta de estar com as pessoas que amo, mas também fazendo algo que é por essas pessoas que amo. E ‘Saga Cega’ mostra onde nasci, o meu crescimento, as minhas dificuldades e superação. Quis trazer minha vitória no final, pois independente de quem você seja, você pode ser um vencedor, pode conseguir conquistar seu sonho.” País Sem Norte “O título dela já diz tudo, né? Porque o nosso país está sem rumo e também está vendendo o Norte, está vendendo a sua Amazônia. É um título que na verdade tem múltiplos sentidos. Quis exaltar o povo do Norte que, ao meu ver, é a região mais abandonada do país. O Nordeste ainda é visto, ele é lembrado por suas praias, litoral, tudo, mas o Norte é completamente abandonado. E é uma região mágica, cheia de cultura, de pessoas lindas, guerreiras, maravilhosas. Teve uma época da minha vida que ia muito para o Norte. Ia ao Amapá, ia muito ao Pará, ao Amazonas, isso sem show, sem nada. Ia para estudar mais a cultura, estar ali presente, sentir na pele aqueles rituais culturais que aconteciam, estar mais próximo daquela realidade também. É praticamente como se fosse outro país, um país dentro do nosso, porque são de fato boicotados, afastados da gente. As passagens são muito caras, os artistas de lá não rodam muito, falta visibilidade. Por isso, quando sai um artista de lá, o cara estoura, porque é muito rico. Em ‘País Sem Norte’ quis trazer visibilidade para esse povo e mostrar que a gente está perdendo o nosso país, perdendo o nosso Norte, nosso rumo. Estamos dando de mão beijada para os gringos, por qualquer valor, porque na verdade o que tem valor não tem preço, é meio que um alerta no meio dessa pandemia, dessa catástrofe. Um país sem Norte, precisamos encontrar nosso rumo.” Olho de Boi (BaianaSystem) “‘Olho de Boi’ partiu do Russo Passapusso, na verdade. Eles criaram um beat, mas a ideia de ‘Olho de Boi’ partiu dele. Um cara que tem um conhecimento muito vasto, tem uma parada de viajar nas ideias, na imaginação. Se você olhar para o olho do boi, ele passa uma força, uma confiança, uma proteção aos seus, tem uma parada muito profunda. Tem uma coisa muito forte ali no olhar no boi. Também tem o lance de o olho ser o espelho da alma e tem a parada da semente olho de boi, que protege do mau-olhado, afasta os maus fluidos. A gente fez inspirado nisso. Na minha letra, também quis abordar muito a parada da Bahia, da cultura baiana, porque vivi muito tempo lá, morei cinco anos lá. A ‘Fita Embolada’ nasceu na Bahia, tenho um elo muito forte com a Bahia na minha carreira, na minha história e na minha vida. Então abordei a parada do ferryboat, ‘saio dessa fila e pego o ferryboat, não é west coast, é Nordeste coast’. Porque as pessoas saem da ilha para trabalhar e, como tem essa parada do apelo norte-americano no rap daqui, quis também dar essa pancada. Essa parada de abrir o olho mesmo, ‘olha, a nossa cultura está aqui, a gente está imitando os gringos, não precisa, olha tanta coisa aí’. Então é mostrar também o Brasil, o Nordeste e essa psicodelia nordestina que sempre existiu, Raul Seixas, BaianaSystem, uma parada meio alquimista e tal.” Aboio “Todas são especiais, mas esta música tem uma parada única. Primeiro, ela tem algo inédito que é um aboio de um vaqueiro numa batida de rap. É uma parada que nunca aconteceu na história da música, que toca, emociona, porque o canto do vaqueiro é muito forte. Sempre fiquei pensando: ‘Caramba, velho. O vaqueiro criou um canto onde ele consegue se comunicar com o animal’. É uma parada muito incrível. É a arte imitar a vida mesmo. Com o canto, ele leva as vacas e os bois para um lugar seguro, um lugar de pasto, que é um lugar de se alimentar. Pensei, ‘O que vou fazer?’ quando criei o beat, porque criei o beat primeiro, antes de tudo. ‘Qual tema vou abordar nesta música? Se for falar de vaqueiro, dessa parada, vai ficar meio batido, porque já abordo muito o Nordeste nas minhas músicas, sempre abordei. Quero falar de uma parada que contemple mais gente, maior’. Aí veio essa parada dos refugiados e dos imigrantes, que estava sendo muito pesada. Os bagulhos da Venezuela, dos chilenos, dos africanos. Dos mexicanos que os Estados Unidos estavam separando os pais dos filhos, colocando os filhos em gaiolas separados dos pais. Aquilo foi f*** para mim, entendeu? Falei, ‘o tema é esse, aboio’. É um canto para conduzir o nosso povo para um lugar melhor. Para conduzir o nosso povo a um lugar de paz, onde ele possa ser o protagonista, onde ele possa ser o chefe, o vencedor. Tenho recebido um retorno muito forte dela, de gente do mundo todo. Acho que essa parada tende a virar uma campanha mundial no futuro, é algo muito forte. Não tem quem não se identifique, porque, no fundo, todos nós somos imigrantes, a gente é de todo canto e de canto nenhum ao mesmo tempo.” Paga pra Ver “‘Paga pra Ver’ nasceu quando me mudei para o Rio de Janeiro, quase dois anos atrás, moro no Cosme Velho. O Rio lembra Salvador, você não tem só prédios e condomínios sem a presença das favelas. Não existe. A todo lugar que você vai, estão o rico e o pobre, lado a lado. O condomínio e a favela, a favela e o condomínio. Onde moro tem esse contraste de desigualdade. A gente está num lugar classe média, mas está rodeado por favelas, sempre refleti sobre isso. Perto de onde moro, tem a rua que sobe para o Cristo Redentor, a gente vê os gringos passando, os ricos indo visitar, e eles passam por dentro de uma favela, praticamente dentro de uma comunidade, para subir até lá. Aí me aprofundei ainda mais nessa desigualdade, no refrão eu falo: ‘Quer ver Deus do céu no alto do morro, camarada. Paga para ver. Para ver o poder nos braços do povo, camarada. Paranauê’. Tipo, se a gente quiser o poder, a gente vai ter que lutar, a gente vai ter que cair pra dentro. Para o rico subir, ele tem que descer, tem que descer do salto. Aí faço uma uma brincadeira do morro ou mato, né? Quem está ali na luta todo dia ou mata ou morre para sobreviver. Essa é a realidade, se você plantar desigualdade, você vai colher a guerra, não tem como, não tem para onde correr. Se você é egoísta a ponto de querer se dar bem em cima de pessoas que não têm condições nem de se alimentar direito, você está pedindo guerra. Porque uma hora essa pessoa não vai aguentar e vai querer reivindicar de alguma forma o que ela merece. O trabalhador faz milagre mesmo, todo dia, toda hora, então você tira do pobre e não quer ser sequestrado, não quer ser roubado, é uma certa burrice, porque se você plantasse a igualdade, você teria menos violência, menos morte, menos assassinato, menos assalto. Então é a maior burrice você achar que está seguro dentro de uma prisão que você criou para você mesmo. Você está preso dentro disso junto com o pobre, não tem para onde correr.” Meu Ceará “Por muito tempo já queria fazer uma música em homenagem a minha terra. Já tinha feito ‘Norte Nordeste me Veste’, que virou um hino de todo o Nordeste, mas sentia falta de fazer uma música que homenageia a minha terra. Uma terra de tanta gente, de tanto guerreiro e guerreira, de tanta gente que fez diferença na história do Brasil e do mundo, né? A gente tem o Ciswal (Santos), que é um gênio, foi para Harvard. Temos o Bráulio Bessa, que é um grande poeta, temos o Tirullipa no humor, a Rachel de Queiroz, temos a Viviane Sucuri, lutadora de UFC e o Patativa do Assaré. É tanta gente genial. Então resolvi fazer esta música em homenagem a eles. O próprio Albert Einstein e a teoria da relatividade. Sobral era o melhor local para estudar a teoria da relatividade no mundo, devido ao tempo, clima, relevo, tudo. Vou te falar que quando ouço essa música, fico impressionado, porque consegui colocar muitas referências em linhas. São muitas referências por linha e tudo com contexto, coerência, e também batendo, dando porrada social ali, conseguindo colocar tudo isso, Belchior… inclusive, quando eu era criança, ele me pegou no colo, minha mãe me contou essa história, fiquei de cara com isso. O sobrinho dele (Belchior) era meu melhor amigo, a gente vivia colado. Ele ia lá de vez em quando. Minha mãe falou que ele me pegou no colo. Sempre fui admirador dele. Também dou esse salve para Belchior, Amelinha e Ednardo, que faziam parte do Pessoal do Ceará, que era um grupo f***, nem todo mundo conhece, mas era um trabalho muito bom. Cidadão Instigado… Vixe, é tanto coisa. Eu falo: ‘Nordeste rima sem seu alvará’, mostrando que a gente tem autonomia sobre o que a gente faz. A gente está aqui, está vivo, o hip-hop está vivo aqui no Ceará. O atual campeão nacional do Duelo de MCs é um cearense de Juazeiro do Norte, chamado MCharles. Então é muito importante em um momento tão crítico quanto este, em que o povo está sofrendo, a gente exaltar, a gente reconhecer o valor dessas pessoas. Quando um nordestino vence, é como se o Brasil todo vencesse, porque as pessoas tendem a se inspirar naquela pessoa que venceu. Para o Nordeste, isso é muito importante. Porque a gente vive se inspirando em heróis norte-americanos com tantos heróis aqui na nossa terra.” Obra Criação “Esta daí também é outra parada que me emociona, viu? Ela foi a primeira que nasceu deste trabalho, ela nasceu em 2012, mais ou menos, em um momento muito difícil. Quando eu vinha para o Rio, não tinha dinheiro, não tinha lugar para ficar, quando vinha encontrar com o Cachaça. Dormia na casa de um, na casa de outro, em meio a essa dificuldade, a essa saudade de casa, da minha terra, da minha família, dos meus, nasceu ‘Obra Criação’. Que é uma coisa que tem muito a ver com a cantoria dos repentistas, dos cantadores antigos, das trovas, daquela coisa mágica, né? Que a cantoria e o repentista trazem, o cordel, ela é uma música orquestrada, mais cantada, mas em formato de canção, e traz toda essa magia do sertão. Mostra a luta do sertão com o avanço da tecnologia, com a urbanização engolindo todo o sertão, a luta pela natureza para se manter viva. A luta do povo para manter os seus costumes em meio a era da globalização, da internet, da tecnologia. Eu falo: ‘Derrubaram as nossas casas, levantaram edifícios. Minha terra é minha causa, Deus me deu asas para cumprir o meu ofício’. Essa ligação que faço mais uma vez do rural com o urbano e, ao mesmo tempo, o rural lutando para não ser engolido pelo urbano, se manter vivo. Manter vivo esses costumes e essa cultura. Hoje, o jovem do interior, ele não está querendo mais seguir a saga dos pais e dos avós da cultura de Pernambuco, Paraíba. Muita coisa está morrendo e se acabando, porque os jovens não querem mais ter esse compromisso. Como os velhos vão morrendo, esses conhecimentos vão morrendo com eles, né? O jovem não vai passar isso para frente.” Quebra-Queixo “Foi a segunda música que nasceu depois de ‘Obra Criação’. O Cachaça tem essa coisa com a viola, ele toca tudo. Toca guitarra, bandolim… Quando o ouvi tocar pela primeira vez a viola de dez cordas, que é a viola do repente, fiquei encantado, doido, porque é uma coisa com que me identifico muito. Ele foi tocando, e a gente foi brincando ali, criando junto, fazendo ‘embromation’, improviso. Aí surgiu esta parada e, nessa altura, o governo também estava essa calamidade quando escrevi essa música. E está bem pior hoje em dia, o que falei antes serve para agora, não virou um assunto batido, infelizmente. Falo: ‘Difícil é viver e ter que fazer o que o governo não fez, o povo brasileiro faz milagre todo fim de mês’. Pior do que o fim do mundo é o fim de mês, para o povo que luta todo o dia. Sinceramente, fico de cara com o milagre que essa gente faz. Não sei quantos filhos, com um salário mínimo, a pessoa faz mágica para sobreviver, e esta parada da viola traz muito essa coisa do povo mesmo, o toque tem a cara do povo, a viola e o canto têm a cara do povo. Também falo do consumismo, a gente que sustenta o capitalismo com o consumismo, a gente que sustenta os ricos. O mundo todo está cego ou só eu que estou vendo? Pobre nasce devendo e sustenta a vida do ego. No princípio, era o verbo e o precipício se averba, tudo era imposto e só comida, casa e colégio. Então ela traduz bem a realidade do povo brasileiro, a parada do consumismo, de como isso te cega, te põe uma venda, e te põe à venda, é o duplo sentido da parada.” Desapego “Ela surgiu numa época em que minha mãe estava em depressão e tentou o suicídio, estava muito abalado. As pessoas acham que vida de artista é só coisa boa, só o glamour, o status, o dinheiro, as viagens. A gente é cobrado pela perfeição o tempo todo, a gente tem que ser perfeito para as pessoas, a gente não pode errar, a gente tem que ser tipo um robô, tem que estar bem o tempo todo para todo mundo. As pessoas passam a não perceber que a gente também é um ser humano, que também temos fraquezas, temos os nossos defeitos. Estava muito abalado com essa coisa da minha mãe, tentando fazer o álbum, a Matilha Cultural estava dando a estrutura para eu fazer o álbum e eu estava atravessando uma série de coisas difíceis, término de relação, ficar longe das minhas filhas. Mudei para o Rio para trabalhar e minha mãe naquela situação, porque sempre sustentei a minha família sozinho, meus pais, meus irmãos, sempre ajudei todo mundo em casa, nunca deixei ninguém para trás. Talvez por isso tenha demorado tanto para fazer um álbum novo, porque estava nessa luta nestes dez anos. Chegou uma hora que cansei de toda a cobrança das pessoas por um álbum, por eu estar bem o tempo todo, por ser um super-homem. Nas músicas, as pessoas geralmente falam que elas são f***, que são super-heróis, que elas são imbatíveis, nada os afeta, mas, na verdade, todo mundo tem medo de expor suas fraquezas. Quis ser sincero nesta música, assim como em toda as outras, mas nesta quis tratar de uma parada mais pessoal. Falei um pouco dessa depressão e dessa cobrança que leva à depressão. É uma música pop que mostra o outro lado do pop, que não mostra o glamour, não mostra o cara se dando bem, mostra o lado da solidão do artista, quando ele está só, no camarim ou no quarto de hotel, chorando, longe da família, da esposa, do marido, enfim.” Rap Star “Gosto muito dessa porque é aquela parada, quem conhece o RAPadura conhece o RAPadura do rap, do flow, das líricas, das ‘punch lines’. Não podiam faltar essas características que são bem minhas, multissilábica, sequência de rima, que é uma coisa que faço muito nas minhas músicas, de metáforas e duplos sentidos. Quis explorar de fato todo o meu potencial como MC, uma coisa bem voltada para o rap mesmo. Botei DJ, colagem, tem umas colagens do RZO, da música ‘Superstar’. Criei a ‘Rap Star’. À primeira vista, quis causar um incômodo no nome, quando você ouve ‘Rap Star’ imagina logo o quê? Ah, o bicho vai tirar onda de estrelão, que ele é muito bom. Mas quando você vai ouvir a música, no refrão eu estou falando, ‘o rap é o número 1, não sou eu, não é ele, não é outro, ninguém é melhor do que ninguém, o rap é o todo, é o número 1’. Ao mesmo tempo que ele está aí para todos, todos podem ouvir, todos podem apreciar, ele também não é para qualquer um fazer, porque é uma parada muito especial, muito bonita, de uma responsabilidade muito grande com a palavra. É uma parada muito sagrada para qualquer pessoa chegar e falar a besteira que quiser, achar que está fazendo rap. Existe uma diferença entre MC e rapper. O rapper é aquele que faz rap, qualquer um pode ser um rapper, o MC é aquele que representa a cultura hip-hop. Um MC pode ser um rapper, mas um rapper não pode ser um MC. É mais ou menos isso que quis trazer, toda essa lírica e tem uma linha muito boa que gosto, que é: ‘Nunca tive rei na barriga, quem tinha era minha rainha’, ou seja, ela me tinha na barriga dela. Tem também uma que falo: ‘Sai da poltrona e tudo veio à tona, decepcionei minha família e voltei sem diploma. Sou um mestre sem cerimônia’. Porque me tornei mestre na arte do rap, na arte da escrita, mas eles queriam que eu fosse um mestre no diploma. Eu não aceitava aquilo, larguei escola, larguei emprego com carteira assinada, para fazer rap. Na época isso era uma loucura, ‘você vai passar fome, vai virar mendigo, passar necessidade’. Hoje, eu vivo do rap, contrariei tudo que todo mundo achou que ia acontecer, e nisso me tornei um mestre dentro do rap, dentro da escrita, da poesia. No final, termino assim: ‘Em escolas públicas, fiz do rap uma república, repente de rua, cearense vence sem súplica. Vim de secas rústicas, acústicas, sem dúvidas. Com dádivas paguei minhas dívidas e devo à música’.” Peleja de Xique Chico “Não sei se você sabe da origem desse nome meu, RAPadura Xique Chico. Ele engloba bem na explicação da música. RAPadura é o nome que me deram no rap, não foi nem eu que botei, foi o que me deram. O xique vem da planta xique-xique, que é resistente à seca, se mantém ali viva mesmo na seca. Chico do meu nome, Francisco, que é o meu primeiro nome, nome do meu pai e do meu avô. Então é a ‘Peleja de Xique Chico’ contra a desumanidade, abordando tudo que está acontecendo no mundo. Como o mundo está louco, de como as pessoas estão doentes, são frias, as pessoas não estão se amando. Nessa música falo muito disso, de como a sociedade tem assassinado as nossas mulheres, as nossas ativistas, da tragédia de Brumadinho e Mariana. A verdadeira traição de um casal é quando eles desistem um do outro, o divórcio. De como tudo isso virou comércio, o divórcio, o casório, o óbito. Tudo isso virou empresa, comércio. Falo também de diabos que matam em nome de Deus, é a contradição da humanidade, você mata e justifica, diz que aquilo é uma coisa santa, uma coisa que acontece muito no Oriente Médio. Também tem essa coisa de você se aceitar como você é, como eu falo: ‘Não nego o fruto do pecado, me negam o aborto, pois engravido folhas virgens em cada esboço. Assumo e assino o filho que nasce em cada gozo, pai presente o texto todo, todo o meu esforço é pouco’. Teve um tempo que estive muito perdido e duvidoso sobre mim mesmo, sobre o que ia fazer da minha vida, o tipo de música que ia fazer, porque chegou o trap e dominou tudo. As pessoas não queriam mais ouvir a mensagem, não queriam mais ouvir o boom bap. Fiquei indeciso, assim como muitos artistas ficaram. Teve gente que até entrou em depressão, teve gente que desistiu da carreira. Gente que tentou ser o que não era e acabou se perdendo. Então foi muito difícil essa época, e a minha cultura me salvou. A minha cultura me estendeu a mão e me trouxe de volta. Por isso que nasceu ‘Universo do Canto Falado’, ele nasceu de todo esse conflito comigo mesmo, desse incômodo, dessa parada de me autoafirmar e ter a certeza do que sou. A ‘Peleja de Xique Chico’ é isto, a peleja do povo contra a desumanidade mesmo, dos dias atuais, do egoísmo, falo no refrão que o ego mata mais que a arma, mata a alma, enquanto tudo isso aqui se acaba, o mundo cheio de si não consegue se ver.”

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