De Lá Até Aqui

De Lá Até Aqui

Em dez anos, dá tempo de acontecer muita coisa. Para Lúcio Silva de Souza, mais conhecido como Silva, a efeméride traz, além de maturidade, evolução musical e o merecido sentimento de realização, um resgate afetivo em seu baú de memórias. As dez faixas do álbum De Lá Até Aqui carregam histórias do passado de Silva, que envolvem lembranças da infância e juventude e evocam grandes personagens – do irmão, amigo e parceiro de composição, Lucas Silva, ao avô do cantor e até Marcos Valle. “Eu sou aquele tipo de pessoa que não gosta de comemorar o próprio aniversário, mas foi inevitável celebrar esses dez anos. O Lucas e o André, meus irmãos, vieram então com essa ideia”, ele conta ao Apple Music. “Comecei a gostar dessa festa para mim mesmo e passei a olhar com afeto para essa história. Quando fui gravar o álbum, fiquei emocionado em vários momentos, lembrando de quando aquelas músicas foram feitas – e como, na época, eu não fazia ideia de onde meu trabalho iria chegar.” Musicalmente, De Lá Até Aqui é um apanhado da trajetória de Silva, que, com formação em violino e piano clássico, sempre teve boa disposição para desbravar ritmos diferentes – do brasileiríssimo axé (na versão de “Amantes”, do Araketu, e em “Pra Vida Inteira”) ao rocksteady jamaicano (“No Seu Lençol”). A obra ainda revisita faixas emblemáticas da carreira do cantor, como “Cansei”, “Ainda” – um retorno às suas raízes clássicas – e “Não É Fácil”, do bem-sucedido álbum Silva Canta Marisa, de 2016. E, ainda que De Lá Até Aqui trace essencialmente a jornada emocional e sonora de Silva, vale dizer que a seleção das faixas para o álbum também levou em conta um critério técnico importante: a possibilidade de criar versões acústicas de músicas com texturas complexas. “Nos meus primeiros álbuns, principalmente, eu era mais produtor musical do que cantor. Eu escondia a voz, sabe? Minhas primeiras músicas funcionavam por conta dos seus arranjos; se você as tirar desse contexto, não sei se dariam certo só com voz e violão”, ele conta. “Então escolhi músicas cujas composições fossem redondas a ponto de funcionarem a cappella.” A seguir, Silva conta mais histórias por trás das dez faixas de De Lá Até Aqui. Pra Te Dizer Que Tô Feliz Assim “Não poderia ter feito essa com um parceiro de composição que não fosse meu irmão Lucas. Nós compomos juntos desde a adolescência. E essa música foi uma surpresa, porque ele começou a escrever a letra e me mandou uma parte, e ela fala sobre a trajetória de uma carreira, sobre essa jornada. Só que o Lucas não tinha pensado nisso, ele pensou numa história de amor mesmo [risos]. Mas a letra tinha completamente a ver com a ideia do álbum, a comemoração dos dez anos. A música começa falando: ‘Meu caminho não é reto, não é reto para lá’, e eu nunca andei em linha reta, sabe? Sempre transitei por muitas coisas, é o que acho mais legal na música. E o melhor de ser cantor, e não banda, é ter essa possibilidade de extravasar um pouco no conceito. Então é isso, essa é a primeira do álbum e é bastante representativa.” Cansei “Essa é lá do meu primeiro álbum, o Claridão, que saiu em 2012. Também é uma composição minha e do Lucas. Eu estava morando em Dublin na época, isso foi em 2009, e estava fazendo vários shows por lá, que era uma coisa de que eu gostava muito – viajar por outros países ali perto, pegar festivais e tal. E eu andava muito inspirado na época. Era novo, tinha uns 21 anos. E lembro que a gente fez essa música por e-mail, o Lucas mandou a ideia dela e fiquei apaixonado de primeira, respondi para ele: ‘Irmão, você arrasou’. A gente não tem um processo de composição muito definido, às vezes eu venho com a melodia, às vezes vem o Lucas. Ou então eu apareço com um refrão já pronto, e ele constrói uma história em cima dele. E ‘Cansei’ foi uma música em que ele apareceu com melodia e letra. E tem uma coisa curiosa sobre essa faixa: quando comecei a fazer terapia, minha terapeuta foi analisar algumas músicas minhas e disse: ‘Essa aqui é um prato cheio para um terapeuta’. É um desabafo da vida. E é também uma música que eu nunca mais tinha tocado, então foi um prazer gigante revisitá-la e perceber que ela continua fazendo sentido em vários aspectos.” Amantes “Sou nascido e criado em Vitória e acho que as pessoas do Espírito Santo têm uma relação..., quer dizer, não posso generalizar, mas minha família, pelo menos, tem uma relação forte com o litoral, com a praia. E o litoral capixaba tem uma cultura musical baiana muito forte. Compus essa música para representar meu momento fazendo o Bloco do Silva, que talvez seja o ponto mais fora da curva na minha carreira. Aliás, ele deve continuar, o bloco cresce a cada ano. ‘Amantes’ é uma música do Araketu de meados dos anos 90, eu era muito criança quando ela tocava nas rádios do Espírito Santo. Então é uma música que sempre me marcou muito, tenho uma memória afetiva gigantesca dela. Acho a melodia maravilhosa, a composição brilhante – aliás, a letra é do irmão do Marcos Valle, o Paulo Sérgio Valle. Das composições brasileiras daquela época, do axé principalmente, acho que essa é uma das maiores.” Não É Fácil “Essa música é do meu projeto Silva Canta Marisa. Eu tenho um carinho gigante por ele. Esse álbum foi indicado ao GRAMMY Latino e lembro que, no começo, quando eu falava que queria cantar Marisa [Monte], algumas pessoas questionaram: ‘Você vai fazer isso mesmo? Tem certeza?’. E depois foi uma grande surpresa, para mim e para quem estava por perto. Esse álbum abriu caminhos na minha carreira. Muita gente começou a ouvir a minha música depois dele. Saí um pouco do nicho em que eu estava, que era um público mais indie, e abri a porteira para um público mais diversificado. ‘Não É Fácil’ é desse álbum de que gosto muito e que eu ainda não tinha revisitado. E ela veio agora nesse formato voz e violão, um pouco mais simples do que costumo fazer, mas é com todo o carinho que tenho por essa música. Por ela e pela Marisa, que foi e continua sendo muito generosa comigo. E uma amiga muito querida.” No Seu Lençol “É uma música do Cinco, meu último álbum. Venho flertando com o reggae há muito tempo, eu gosto muito de reggae, e principalmente de rocksteady. Lembro de pegar essa fase do rocksteady, e, de uns sete anos para cá, ouvir bastante esse gênero. Então estou sempre pesquisando coisas de rocksteady que ainda não conheço. E, quando fui fazer meu último álbum, pensei: ‘Por que nunca fiz isso? Adoro rocksteady e nunca toco nada nessa onda’. E essa música mescla um pouco de rocksteady com jazz. Ela tem uma coisa de música brasileira também, de pop brasileiro. E fala sobre rodar o mundo todo, que é uma oportunidade que eu já tive, não o mundo todo, mas pelo menos percorri alguns continentes com a minha música. Só que, de repente, você roda o mundo todo e vê que não são tantas surpresas assim como você imaginava. E, às vezes, nessas coisas que a gente tem na nossa vida – nossa cidade, o lugar onde a gente nasceu, as pessoas mais próximas – existem uns tesouros aos quais a gente não dá tanto valor. E essa música fala do amor desse ponto de vista, sabe – de quem rodou tudo e viu que o legal já estava ali desde sempre.” Sou Desse Jeito “Essa é muito forte para mim porque é a música em que me assumi sexualmente. Eu não falava sobre o assunto antes porque tenho um passado religioso, era tabu para mim. Minha família toda é protestante, então, quando meu irmão, o Lucas, começou a escrever essa letra, lembro que vi a primeira parte da música e fiquei muito emocionado, porque era o meu irmão falando de mim, como se fosse eu, sabe? Foi uma coisa muito forte para mim. A gente sempre foi muito amigo, então ele acompanhou todo o processo, por isso é uma letra que me pega muito. Ela é quase dramática mesmo. Volto sempre para esse lugar, toda vez que a canto. Não tem como. E muita gente também se identifica com ela, então não podia ter ficado de fora desse álbum.” Ainda “Talvez essa seja uma das minhas músicas mais antigas. Eu me inspirei em uma peça de Schubert para piano. Eu fiz essa música quando tinha uns 18, 19 anos, mas só fui gravá-la no Vista pro Mar, meu segundo álbum, e tenho uma relação de muito carinho com ela. Eu lembro que meu avô, que sempre me incentivou muito musicalmente, dizia: ‘Lúcio, você tem que estudar mais, estudar violino’. E, quando mostrei essa música para o meu avô, ele gostou muito, pedia sempre para eu tocá-la – ‘Toca aquela que parece uma valsa’. Então tenho muito afeto por ‘Ainda’. Não só por ser das primeiras que eu fiz, mas porque continuo admirando essa composição. Tem coisas na nossa carreira que, com o tempo, a gente fala: ‘É, tudo bem, eu ainda era novo nessa’. Você percebe uma certa imaturidade. Mas essa é uma composição que sigo admirando. Ainda gosto do que fiz.” Duas da Tarde “Essa música me surpreendeu muito. As pessoas têm um carinho por ela – e eu também. Se eu entrar no meu Instagram e for ver coisas em que fui marcado, sempre tem essa música. ‘Duas da Tarde’ fala de como é bom estar perto do mar, ela é bem ‘good vibes’. Mas a história por trás dela é muito boa. Vou tentar resumir: certa vez, acho que em 2016, fui tocar em São Paulo para uma marca e eu ia abrir para o Marcos Valle. E, antes de o show do Marcos começar, eu estava no camarim, e a produtora dele veio me perguntar: ‘Silva, você quer dar um oi para o Marcos? Ele perguntou de você’. Respondi: ‘Claro! Vou amar’. Aí fui para o camarim dele, começamos a conversar, e, então, fiz uma pergunta bem de fã mesmo: ‘Cara, como é que você está tão bem assim aos 70 anos, até hoje com essa cara de surfista carioca?’. Aí ele respondeu: ‘Cara, o segredo é acordar todo dia duas da tarde e não se sentir culpado por isso’. Achei essa resposta maravilhosa, e eu e meu irmão nos inspiramos nela para fazer essa música. Ela vai um pouco contra esse discurso da produtividade o tempo inteiro, sabe? De ser workaholic e tal. Ela vai para esse momento da vida de ficar tranquilo e respirar no seu ritmo.” Pra Vida Inteira “Esse é um samba-reggae, ou um axé, como as pessoas falam de um jeito mais genérico. Eu e o Lucas fizemos essa música juntos para gravarmos com a Ivete [Sangalo]. Essa faixa foi pensada para ela. A gente cresceu ouvindo Ivete, Daniela [Mercury], tudo o que é da Bahia. Nos anos 90 na minha casa, eram as que mais tocavam. Então esse é meu flerte com samba-reggae, com a axé music. E tenho muito carinho por essa música, não só por ter gravado com Ivete, que admiro muito – tanto por sua história quanto por suas composições. Ela me leva para esse lugar nostálgico dos anos 90. Não sei nem se isso vai acontecer de novo.” Um Pôr do Sol Na Praia “Acho que essa é a música que mais ouço, também uma das que mais vejo pessoas me marcando, provavelmente pelo nome dela, que é quase um nome de quadro, uma obra bem narrativa. E todas as faixas que entraram nesse álbum são músicas que continuam fazendo sentido até hoje. Também fiz essa com meu irmão, já tem um tempo. Eu lembro que não foi uma música que explodiu de cara, mas ela foi crescendo com o tempo e hoje até soa como uma faixa nova para mim. É outra música de que gosto muito e provavelmente não vou poder parar de tocá-la tão cedo, sou muito associado a ela. Além disso, consigo imaginá-la fazendo sentido daqui a dez anos, ela tem uma coisa atemporal na composição, na ideia musical. É o tipo da música que termina o álbum com três reticências, e não com um ponto final.”

Selecionar um país ou região

África, Oriente Médio e Índia

Ásia‑Pacífico

Europa

América Latina e Caribe

Estados Unidos e Canadá