Terral

Terral

No surfe, terral é o vento mais favorável para o esporte; parte da terra em direção ao mar. Terral também é o título do álbum que une o compositor, músico e cantor carioca Pedro Luís com o produtor musical pernambucano Yuri Queiroga. Por ligações familiares, os dois se conhecem há muito tempo, mas começaram a criar juntos recentemente. “O projeto que desemboca no Terral se iniciou no Rio de Janeiro e se chamava ‘Inusitado’. O Yuri estava passando uma temporada lá e começamos a trabalhar em versões de músicas minhas consagradas nas vozes de outros artistas. Era tudo um pouco improvisado, com celulares e iPads”, conta Pedro Luís ao Apple Music. O projeto não deu certo, mas serviu como faísca para a dupla desenvolver o álbum. “Ficamos com essas produções na mão e achamos que elas precisavam ir para o mundo. Plantamos uma semente que cresceu como uma árvore, não poderíamos fingir que não estávamos vendo”, explica Queiroga. “Até que chegou o Apple Music com o convite para lançar o projeto em Dolby Atmos, uma coisa bem cinematográfica e sonora.” Em Terral, músicas originais se misturam às faixas de Pedro Luís que já tinham sido apresentadas pela banda Pedro Luís e a Parede e por outros artistas. Elas são reinventadas por Queiroga, que adiciona uma sonoridade mais pop e eletrônica. Para os músicos, o projeto é uma espécie de “álbum-concerto”, em que os dois fazem o papel de uma banda sinfônica. Gravado de forma híbrida (com os músicos juntos e à distância), o álbum mistura instrumentos convencionais com objetos incomuns, como panelas e mesas. “O Yuri tem essa manha de torcer os sons, criar uma personalidade particular para cada um deles e tirar sonoridades de onde nem imaginamos. Ele orquestra tudo o que produz”, elogia Pedro Luís. Quanto ao título do álbum, Queiroga conta que foi escolhido a partir de uma música instrumental de sua autoria, mas que também se encaixa bem no conceito do projeto. “É um nome que sempre admirei. É o vento preferido do surfista, que vai da terra para o mar e forma as ondas maiores e mais proveitosas. Assim é o nosso álbum: com músicas de sonoridades novas e com letras políticas, que também falam sobre meio ambiente, sobre fome, miséria. E a gente quer que o vento mande tudo isso para o mar, para limpar toda essa poluição.” Para o produtor, a palavra terral foi a que mais se aproximou de “resumir todo o projeto”. Pedro Luís e Queiroga apresentam a seguir as dez faixas que compõem Terral. Miséria S.A. Pedro Luís: “É uma música que eu fiz no começo dos anos 90 e que considero uma parceria minha com os ambulantes de ônibus. Os vendedores de balas do Rio de Janeiro tinham um discurso que tem muito a ver com a música. Quando eu entrava no ônibus, eu tinha a sensação de que aqueles meninos eram um batalhão treinado e que alguém botava os produtos na mão deles. A minha impressão era que esse alguém alinhava todo mundo e ficava treinando uma poesia de venda urbana ali, em que todos falavam muito parecidos: ‘Senhoras e senhores, estamos aqui, blá-blá-blá’. Era sempre a mesma situação. Meninos que foram treinados por um mesmo coach de vendas. A partir dessa estrutura que eu via nos ônibus, eu fiz a música. A versão daquela época era uma versão mais parecida com esta que a gente retoma no Terral, um reggae pesado. Mas essa música se consagrou na versão do Rappa e acabou sendo mais identificada com a banda. Então, quando a gente resolveu retomá-la, buscou trazê-la de volta um pouco mais para a original. O Yuri sacou uma sonoridade meio industrial urbana.” Yuri Queiroga: “Eu também conheci a música pelo Rappa, muito antes de saber que era de Pedro. Quando fui procurar conhecer a letra, imaginei essa coisa do ônibus dos ambulantes. Acho que foi a primeira faixa em que a gente começou a trabalhar nos primeiros laboratórios, com gravadores de celular e de iPad. Me lembrou muito de quando eu era criança e fazia isso sozinho. Meus pais são músicos também e cada um tinha um gravadorzinho de fita cassete, com os quais eu experimentava: gravava uma coisa numa fita, dava o play nela, enquanto tocava e gravava no outro. Foi mais ou menos como a gente fez agora, eu estava com uma bateria que gravava uma batida e depois dava play em uma caixa de som. Virou uma experimentação muito bacana. ‘Miséria S.A.’ foi a primeira música com que a gente começou a experimentar e é a faixa que abre o álbum, o primeiro contato com o público.” Calcanhar Pedro Luís: “Esta é uma música incrível do Yuri. Eu acho uma música muito especial; ganhou uma versão de Elba [Ramalho] muito boa também. Quando a gente finalizou o repertório, falei para o Yuri que eu gostaria de tê-la. Não estávamos na mesma cidade, e ele me mandou uma base incrível, já sugerindo fugir das duas versões que ele mesmo tinha produzido, o que é um desafio terrível, mas eu acho que nesse caso foi maravilhoso. Eu gosto muito do resultado e acho que ela é uma das melhores músicas do projeto.” Queiroga: Foi um desafio mesmo, porque ela tinha sido lançada em um álbum de Ylana [Queiroga]. Elba viu a gente tocando e disse que queria gravar. Agora Pedro teve a ideia de gravar ‘Calcanhar’ neste álbum também, mas tínhamos que pensar em uma versão completamente diferente das duas – e aconteceu. Para esta versão, pedi ao poeta Bráulio Tavares que fizesse um rap diferente do que ele fez para a música com Elba.” Soul+ Pedro Luís: “Como ela é uma música com trechos em inglês, com a cantora Marta Ren, [o sinal +] é para mostrar que não é a versão clássica do primeiro álbum d’A Parede. Nesse sentido, essa versão é uma parceria minha com ela. Como é uma música revisitada, com trechos em inglês, a gente teve que buscar um outro lugar, e Yuri foi novamente incumbido disso.” Queiroga: “Quando eu comecei a montar, com as vozes do Pedro e da Marta, fui fazendo um arranjo com a base e senti que poderia colaborar no meio com uma coisa mais falada, meio rap. Escrevi esse trecho, cantei nessa parte, mandei, eles gostaram do jeito que ficou, e virou mais uma colaboração.” Seres Tupy Queiroga: “Esta foi uma daquelas primeiras sementes, que seria do projeto ‘Inusitado’. Tem uma letra muito forte, muito importante e, infelizmente, ainda atual. Fala da miséria, da pobreza, da dificuldade de moradia. Fala que Porto Alegre é o Acre; a pobreza só muda de sotaque. Uma das características fortemente predominantes do álbum é a crítica social. Uma curiosidade é que, quando criei o beat, ele ficou ao contrário, o tempo ficou virado. Mesmo errado, ficou suingado, gostei muito.” Pedro Luís: “Bacana quando o erro resulta em algo interessante. A estrutura dela é curiosa porque ela é muito intuitiva.” Sangue Soa Pedro Luís: “Esta faixa é uma das inéditas. É uma provocação que o Yuri traz e que a gente desenvolve a partir de um conceito sonoro e de um contexto.” Queiroga: “Quando eu me hospedava na casa de Pedro e fazíamos experimentações, esta música já estava na minha cabeça, pensando em quem faz arte, que o sangue voa. Eu mostrei para Pedro, que trouxe uma melodia com o seu jeito de cantar. Eu lembro que senti uma coisa muito especial ao vê-lo cantar uma música minha. Pedro é um mestre para mim.” Mão e Luva II Pedro Luís: “O dois [do título] é porque mais uma vez é uma contribuição poética em outro idioma. Eu convidei a Dai, uma cantora argentina que interpretava músicas minhas. Eu mandei para ela uma versão de ‘Mão e Luva’, música que eu fiz originalmente para Adriana Calcanhotto. Ao revisitá-la agora, eu quis jogá-la em outro lugar. E o Yuri também traz uma atmosfera diferente da que eu tinha proposto, mas a leva para um lugar bacana, diverso das originais.” Queiroga: “É uma música bem cinematográfica. E pensei que seria muito bacana se ela tivesse uma orquestra. Para soar assim, eu usei uma caneta esferográfica raspando na corda do violão. Fica muito parecido com violino. Também desenvolvi um beat eletrônico que a deixa mais dançante, bem para cima.” Miséria no Japão Pedro Luís: “Esta música surgiu a partir da observação do dia a dia, inserida no território que eu chamo de crônica social. Ela nasce em um sinal de trânsito, no cruzamento de muito movimento perto de onde eu moro. Crianças que vendem coisas no sinal ou que pedem dinheiro. É um pouco sobre isso que a música fala: ‘Somos filhos da pobreza social, somos todos para-brisas de futuro nacional’. Você está ali dentro do seu carro; nós, da classe média, assistindo a todo aquele movimento de sobrevivência. Quando eu vou ao Japão, eu vejo pessoas em situação de rua, algo que eu só supunha existir, mas descobri que isso existe. Esta é uma das músicas que me faz pensar, porque eu a escrevi há 30 anos e ainda é atual.” Queiroga: “Ela também foi uma das primeiras músicas com uma parte mais política que a gente desenvolveu. Enquanto a gente produzia, eu falava: ‘Parceiro, isso é muito atual’.” Batalha Naval Pedro Luís: “Esta faixa tem o mesmo viés de ‘Miséria no Japão’ e tem ligação com manchetes que a gente vê sobre a criança preta e periférica, com os nomes e olhos omitidos por serem menores de idade. A gente sabe que os alvos principais da violência urbana são pretos e pobres, pessoas de comunidades. Essas duas músicas conversam muito entre si porque falam de uma população fragilizada, que vive uma desigualdade.” Queiroga: “Eu criei o beat a partir do que tinha feito em ‘Miséria no Japão’. Na minha carreira, eu me inspiro em Tom Capone, com quem Pedro produziu e trabalhou muito. Quando fomos gravar essa faixa, Pedro puxou uma guitarra que Capone deu de presente a ele. Foi uma emoção incrível e eu usei um solo de guitarra nesta música. Puxei uma nota para cima, vendo até onde a nota ia, e ficou bem legal.” Tecer o Mundo Queiroga: “Começamos com um trocadilho: ‘Vou tecer o mundo e começar pelo terceiro mundo’, que significa ter esperança na mudança e o absurdo que é ninguém nos ouvir. Esta música fala da tentativa de mudar.” Pedro Luís: “Ao revisitar as músicas, Yuri traz elementos novos para desenvolver esse olhar de crítica social e de crônica urbana. Fala um pouco do egoísmo no terceiro mundo, sobre um egoísmo ao qual a gente se entrega nessa vida corrida e tecnológica.” Vida de Zaguá Pedro Luís: “É uma brincadeira linguística que traz uma coisa esperançosa, fala sobre deixar a vida fluir. Esta música traz, depois das reflexões do álbum, esse epílogo de esperança.” Queiroga: “É uma visão dos rios; mais uma vez pudemos falar do meio ambiente. A gente queria escrever uma letra com vários nomes de rios, sem explicar nada, mas que tivesse a sonoridade indígena nas palavras. A gente começou a fazer esse exercício e a letra falava sobre a ‘vida desaguar’. No nosso jeito de cantar, ficou ‘vida de zaguá’, como se Zaguá fosse uma pessoa. Pedro gostou e sugeriu para colocarmos Zaguá como uma entidade. Depois que ela ficou pronta, contei 27 rios mas, no final, falamos ‘po po po’ e descobrimos que também existe o rio Po - então são 28 rios na letra. E o rio vai dar no mar, como o vento terral.”

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