Será Que Você Vai Acreditar?

Será Que Você Vai Acreditar?

Fernanda Takai segue trilhando sua carreira solo em paralelo ao Pato Fu e chega ao seu quinto álbum de estúdio, Será Que Você Vai Acreditar?. Gravado durante a pandemia da Covid-19, no estúdio que tem em casa, e com produção de John Ulhoa, o novo trabalho de Takai traz dez canções, com participações especiais de Maki Nomiya (“Love Song”), ex-vocalista do Pizzicato Five, e Virginie Boutaud (“O Amor em Tempos de Cólera”), vocalista da banda Metrô. “Foi afetado pela pandemia, mas dentro do que afetou a vida de muita gente, a gente até que manteve uma certa normalidade. A parte de repertório já estava encaminhada, a gente já tinha escolhido as músicas, feito as músicas. Fizemos também sem pressa. A gente começou a pegar o disco mesmo em março [...] com o John gravando tudo. Então às vezes eu ia fazer uma guia de voz e deixava o John trabalhando e aí depois, no final do dia, eu ouvia alguma coisa e aí dava algum input e ficava trabalhando um tempo. Foi música a música que a gente foi fazendo”, explica Fernanda Takai ao Apple Music. Produzir o álbum em meio ao isolamento social também ajudou positivamente a saúde mental de Takai e [o marido] John, que não podiam fazer shows, e conciliavam a rotina de gravação com os afazeres domésticos. “A gente acordava e tinha um objetivo, tinha o que fazer, além das tarefas de casa, né? Claro, a gente tava fazendo tudo, a coisa de você ter uma rotina de tomar café, e aí a filha [Nina] vai pra aula remota no quarto dela, e a gente vai trabalhar no estúdio; tem a hora de cuidar do jardim, tem a hora de fazer comida, que demora um tempinho, e depois limpar [risos]”, conta Fernanda. “A gente teve, de certa forma, essa salvação que foi fazer o disco.” Toda a parte visual de Será Que Você Vai Acreditar?: foi feita pelo artista plástico Renato Larini – Takai o conheceu no Espaço Zebra, em São Paulo, e desde então tinha o desejo de tê-lo em algum trabalho – combinando perfeitamente com o clima do álbum. “As músicas têm um pouco de melancolia, um pouco de bom humor, que tem que ter pra gente conseguir ficar vivo. E tem vários jeitos de você enxergar e de se conectar com cada uma das músicas”, revela a cantora. “E o Renato tem isso na obra dele, tem obra dele para a qual você olha e, nossa, é muito angustiante, e para outras você olha e diz: ‘que lindo, que coisa plástica, maravilhosa’. Outras, quero ter, quero botar isso numa camiseta, quero ter isso na minha parede. E outras, nossa, fiquei com medo [risos]. A mesma obra pode dar essa reação em pessoas diferentes, sabe?” Em 2020, Fernanda Takai completa 28 anos de Pato Fu e 13 anos de carreira solo, feito que ela considera raro e importante em um país como o Brasil. “Olha, você pode ver que é possível, dá pra você ser vocalista de uma banda e ter uma carreira solo, e manter os dois projetos”, comemora. “Só vi coisa boa; dá muito trabalho você ter duas, às vezes até três turnês simultâneas, porque a gente sempre teve eu fazendo solo e no Pato Fu fazendo outra coisa, então tinha fim de semana que era eu, tinha fim de semana que era o Pato Fu. Aí tem o Pato Fu grande, tem o Pato Fu de brinquedo. Tem O Tom da Takai Pop, que não é o Tom Jobim, tem O Tom da Takai com orquestra, são vários shows diferentes. Tem o Pato Fu com Alice, com o Giramundo, tocando ao vivo a trilha. É bom você poder fazer isso assim, ainda mais aqui no país, né? Porque tudo se esgota tão rápido. Você faz um negócio e agora acabou, ninguém quer saber. Então, a gente tem que ter esse repertório de espetáculos em formatos diferentes; a gente consegue circular mais, né?” Abaixo, Fernanda Takai comenta todas as faixas de Será Que Você Vai Acreditar?: Terra Plana “‘Terra Plana’ é uma canção que foi feita no final do ano passado e foi um presente que o John fez pra Nina, nossa filha. Um presente que, originalmente, tem ele cantando, tem arranjo dele. É basicamente esse arranjo que a gente gravou, mas na voz dele. É ele falando dessa sensação de a gente estar vivendo num mundo tão estranho, que questiona a ciência, que dá ré em vários conceitos. Ao mesmo tempo, a gente vai ficando mais velho, eu e John, como será que a nossa filha vai viver neste mundo em que parece que a gente tá perdendo alguma substância intelectual em troca de, sei lá, popularidade, de aparência. É meio que um questionamento muito afetuoso sobre você ter filhos, você ser responsável por alguém, não necessariamente filhos, mas você ser responsável por alguém e viver num mundo que tá tão complicado, tão desigual. Onde os velhos parecem que não servem pra nada, só pra morrer mais rápido. E esse terraplanismo brasileiro vem de muito tempo, né? Desde a saída da Dilma, a gente veio só perdendo terreno [em termos de] de sabedoria, de se importar com o outro, sabe? A gente tá virando uma pátria muito egoísta, né? E é muito ruim isso, essa sensação de você tá aí, eu tenho 48 anos, vou fazer 49, tá chegando a essa idade e, ‘nossa, e agora? O que posso fazer pra tentar ajudar a gente a não dar mais ré?’ [risos]. Por curiosidade, se você quiser ver os comentários dos terraplanistas no meu lyric video, tem cada coisa. E a música não tem um tom agressivo, né? Ela até convida os terraplanistas a pensarem mais uma vez sobre o assunto, é supereducado o jeito que a gente coloca, mas as pessoas entram lá e começam: ‘Ah, o que é isso? Esse CGI da NASA’. Pelo menos eles tão entrando lá e dando audiência, né? A gente é muito assim, eu, e o John também, a gente tem um posicionamento sobre as coisas, mas a gente nunca é agressivo, a gente sempre convida a pensar, às vezes com bom humor, com delicadeza, um tapa de luva. Não adianta chegar e ficar brigando o tempo inteiro, a gente já falou em várias canções nossas. Então ‘Terra Plana’ veio abrindo o disco, ela veio apresentando, o primeiro single… Acho que é totalmente o espelho do que a gente tá vivendo hoje, principalmente aqui no Brasil, né?” Não Esqueça “[A música] é pra Nina do Nico [Nicolaiewsky]. Ele tem uma filha Nina. É muito louco isso. A Nina dele deve ter 21, 22 anos hoje. Quando fiquei grávida, falei com o Nico, ‘ó, vai chamar Nina’. A gente já se conhecia, né? E a Nina dele, como já era um pouquinho maiorzinha, deu a plaquinha do quarto dela, que era de papel machê, que tava escrito Nina, tinha um barquinho, um negocinho todo bonitinho, fofinho, ela deu de presente pra nossa Nina e virou a plaquinha do quarto dela. A gente tem uma ligação muito grande, as duas famílias, a gente com o Nico. Cantei várias vezes com ele. Quando o Pato Fu fez dez anos, no Museu da Pampulha, eles gravaram, o Tangos & Tragédias, o Nico veio pra Belo Horizonte com o Hique [Gomez], e eles gravaram, tocaram lá oito músicas com a gente. Desde que o Nico morreu [em 7 de fevereiro de 2014], existe todo ano uma reunião com amigos dele, que se chama ‘U.Nico’, de ‘Único’, que é como se fosse um jeito de a gente manter a obra dele viva. Então todo ano – este ano não foi possível, porque ia ser agora em junho – a gente se reúne em Porto Alegre e faz um espetáculo no Teatro São Pedro, duas, às vezes três noites, mas é sempre uma celebração, sempre lotado de gente que ama o Nico, e aí vários amigos vão lá cantar as músicas dele, e eu tô sempre lá. Gosto de trazer de novo à tona, músicas de quem eu gosto. Então o Nico, apesar de ser muito conhecido pelo espetáculo Tangos & Tragédias, ele tem grandes músicas nos discos solo dele. Foi um grande autor, compositor, e aí quando vi que tinha esta música que ele não tinha lançado, liguei pra Márcia [do Canto] e pra Nina, a viúva e a filha, e elas disseram: ‘Nossa, o Nico vai ficar muito feliz se você gravar’. E ninguém tinha gravado oficialmente. E esta música também é isso aí que nós estamos vivendo hoje, ‘não esqueça de lavar as mãos’. Essa incerteza do futuro, essa incerteza de filho, como é que vai ser. E aí a gente gravou, e ela saiu logo em seguida mesmo, como segundo single, porque fazia sentindo, e não faria sentido depois; acho que a gente tá vivendo isso fortemente agora, e essa música ia estar no disco, então eu disse, ‘vamos lançar em seguida de “Terra Plana”, é a sequência do assunto’. [A versão do Nico tocando-a no piano em vídeo] é totalmente reverenciada no arranjo, com o jeito do John de tocar o piano, porque ele não é um pianista, né? É um guitarrista que toca algumas coisas, mas é bem presente essa figura musical, né? Aí mandei pra Nina e pra Márcia, pra elas ouvirem, e elas me ligaram chorando, muito emocionadas, [dizendo] que o Nico ia amar. Falei, ‘que bom’, porque não queria fazer nada que incomodasse a família, né? Da família falar, ‘nossa, não tem nada a ver’. Sei lá, isso também tem a ver com a ‘vibe’ do trabalho. Mas elas adoraram, ficaram muito emocionadas. Aí então tive certeza de que foi uma boa escolha.” Não Creio em Mais Nada “Se você olhar quando as pessoas falam da música, elas praticamente não falam em Totó, né? Elas falam só do Paulo Sérgio. E, realmente, acho que talvez seja a música mais conhecida dele, né? [A mais conhecida] que o Paulo Sérgio interpretou e a mais conhecida do Totó também. Acho que ele tem outras parcerias mais obscuras assim, e esta música é de 1970, eu nasci em 71. Mas ouvi muito esta música, porque ela era muito popular nos anos 70, ali em 74, 75, quando eu era pequenininha. Mas acho que é por isso que faz sentido o Música de Brinquedo na nossa vida, com o Pato Fu, por exemplo, porque quando eu era pequena, praticamente não ouvia música de criança; ouvia música de adulto que tocava no radinho de pilha de casa, né? Então, no começo dos anos 70, ouvia as músicas de FM e de AM que tocavam na minha casa quando eu morava na Bahia. Então o Paulo Sérgio era muito popular, e essa música fica, ela vai ficando... fui fazendo outras coisas, e toda vez que a ouvia, falava, ‘nossa, essa musica é demais. Nossa, essa música dá um arranjo muito bom’ [risos]. É outra que tava no caderninho guardada, dessas que vou anotando e um dia sai. E a gente fez um arranjo supermoderno pra ela, inclusive com participação da voz do iOS cantando com a gente, aquele: ‘Não creio em mais nada’. A gente fala que é a Siri que tá cantando ali no meio, né? [risos]. Acho que ela tem uma pegada meio de música de videogame, e precisava, porque como ela é uma música muito conhecida no arranjo original, muito antiga, dos anos 70, a gente precisava atualizá-la de um jeito muito forte. Então essa escolha do arranjo foi bem isso, bateria eletrônica e baixo eletrônico também. Aí ele [John] fica super à vontade para fazer programações sem preocupação com coerência. ‘Isso pode?’. Nada é proibido, né? A gente tem que poder fazer tudo, e aí essa é um prato cheio. E é muito legal ver as pessoas botando a mão na cabeça, ‘cara, o que é isso, que música… eu me lembro de ouvir essa música lá com meu pai, com minha mãe, quando eu era pequeno’. Para o pessoal da minha idade assim, mais ou menos, e ela é realmente muito conhecida. Acho que em karaokê o pessoal canta muito. Eu gosto disso, de trazer, ‘ah, mas você ouvia isso?’. Eu era pequena, mas ouvia. [risos]” One Day in Your Life “Essa também é outro caso, em que a música é de uma moça chamada Renée Armand e do Sam Brown, os dois autores, mas só que o Michael [Jackson] cantou de um jeito que [tornou] a música dele, né? É a mesma coisa do Paulo Sérgio com o Totó. É uma música que inclusive o Michael nem tocava muito ao vivo, ele fez algumas vezes ali, quando tava saindo do Jackson 5, porque foi bem nessa virada dele saindo e ainda fazendo os shows com o Jackson 5, indo pra carreira solo. Essa música é muito emocionante, tenho ainda na fita cassete. Tenho muita fita cassete que ainda funciona aqui em casa e tenho essa fitinha, lembrava que ouvia e voltava, ia e voltava, aquela coisa difícil de antigamente, que você tinha que voltar pra achar o ponto certo pra ouvir a música de novo [risos]. Não é essa coisa instantânea que a gente tá com a música o tempo todo na palma da mão, na ponta do dedo. Essa música parece meio que um anjo cantando: ‘lembre-se que eu tô sempre por aqui, a gente já foi feliz um dia e pode ser de novo’. Tenho um negócio com essa música, só que ela é muito complexa, né? Porque essa gravação do Michael… tem um jeito que o pessoal fala, que é definitiva; é muito difícil de você competir com a gravação do Michael Jackson, com aquele timbre que ele tinha. O próprio arranjo original da música é incrível, muito bonito, mas aí a gente também falou, ‘ah, vamos perder o medo’; falei, ‘John, vamos lá, vamos tentar’. E eu gosto, já tinha gravado ‘Ben’, né? Gosto muito dele, já escrevi texto sobre ele. Acho que [essa música] dialoga bastante com uma dupla de que gosto bastante, mas [cuja obra] nunca gravei, mas dialoga muito com as coisas dos Carpenters, sabe? Eles têm músicas que têm esse clima de balada, aquelas baladas que o pessoal [diz], ‘puxa, vou chorar’. A música de que te falei mesmo, que fiquei ouvindo no repeat, são coisas muito emocionantes e emocionais dependendo da época. Eu não sei porquê, eu era muito nova, mas tenho essas coisas de memória musical mesmo; eu ouvia esta música e ficava muito emocionada, e nem entendia inglês direito [risos]. É igual aos Beatles, você nem entende inglês direito e, de repente, tá gostando dos Beatles, [mesmo sendo] bem pequenininho assim, né? É incrível. Aí você tem uma Karen Carpenter, que também tem uma voz que é aquela coisa de outro planeta, né? E ela cantando aquelas músicas deles também. Eu falava, ‘o que é isso?’. É você quase ficar hipnotizado pela canção, por algumas canções. E esse tipo de balada pop, meio romântica assim, tenho uma queda por isso. Acabo gravando de vez em quando nos meus discos. Acho que talvez a que tenha feito mais sucesso é ‘I Don't Want to Talk About It’, que gravei no projeto do Inhotim. Ela tem isso também, e por isso falei, ‘ah, vou colocar, vamos ver se tem mais gente que gosta’. Porque às vezes tem um monte de gente que gosta e a música tá esquecida, né? Isso acontece demais. Quando gravei Benito di Paula, o pessoal dizia, ‘nossa, Benito di Paula. Cadê o Benito di Paula?’. E o Benito tá vivo por aí, fazendo show, precisando fazer show. Tem tanta coisa boa. Então acho que serve pra isso, na minha carreira solo tem muita reinterpretação, tem muita regravação, mas é justamente não pegando o que todo mundo tá fazendo, é pegando coisas que ninguém tava pensando e trazendo de volta.” O Amor em Tempos de Cólera “Esta música é minha e da Virginie [Boutaud]. Quando a gente tava fazendo ela no estúdio, [a gente se perguntava], ‘nossa, será que tá chovendo mesmo?’. Porque a gente botou o climinha de chuva, aquela coisa meio aquática, uns sonzinhos bem delicados assim, porque a voz da Virginie é delicada e a minha também. Ela fez a canção e me pediu uma letra no ano passado. Eu fiz e mandei pra ela, mas ela não gravava, e falava ‘vou gravar, vou gravar’, e não gravava [risos]. Aí falei com ela, ‘Virginie, você vai gravar essa música mesmo? Porque eu tô fazendo um disco e ia adorar gravar essa música, ainda mais que é uma parceria minha e sua’. A Virginie eu ouvi muito nos anos 80, então é tão legal poder fazer uma música nova com uma pessoa que ouvi quando era nova, começando a gostar de tocar. Ela mora em Toulouse, na França, e através de um convite dela, que foi tão carinhosa em me convidar e que gostava muito das coisas que eu fazia, ela falou, ‘Então grava’. Aí eu falei, ‘então você grava a voz comigo, porque a música é minha e sua. Aí fica, já que você não gravou no seu disco, a gente registra ela da forma mais gostosa e mais delicada possível’. Aí eu mandei pra ela o arranjo que a gente fez aqui e ela adorou. É uma música de acolhimento, né? É uma música que se o mundo tá muito duro, tá muito difícil, [a gente] espera que dê pra fazer um carinho assim. Então a ideia dela é as pessoas ouvirem e se sentirem bem. E aí tenho essa imagem na cabeça, comigo e ela cantando. A gente cantando assim, como duas sereias em um lago na França [risos]. Chovendo e a gente cantando na beira do lago, sereias que não podem mais voltar pro mar, elas ficaram presas ali, mas elas arranjam um jeito de ter um sentido na vida, que é fazer música e ficar cantando [risos]. É mais ou menos isso.” Love is a Losing Game “Essa é a minha canção preferida dela [Amy Winehouse]. Cheguei a cantar ‘Rehab’ em show, no bis assim, cantava de festa. Mas depois que a Amy morreu me deu um bode que falei, ‘não vou cantar mais essa música’. Fiquei realmente muito triste. E tinha visto o show dela em São Paulo, foi doído ver, né? E parei de cantar ‘Rehab’, mas eu gosto muito de dirigir ouvindo essa música, bem alto. E ficava ouvindo essa música também, ouvindo no repeat [...] e um dia vou fazer, vou regravar. E aí um dia vi uma entrevista do Prince falando que ele regravaria ‘Love is a Losing Game’. Falei, ‘tá vendo, até o Prince vai regravar porque ele tem razão, essa música é boa demais’. Aí o Prince morreu também. Eu falei, ‘não, não, que tristeza’. Aliás, os últimos anos foram muito tristes, sem George Michael, sem David Bowie, sem Amy, sem Michael Jackson… Nossa, é uma tristeza pra música pop, pra essas pessoas valorosas. E eu ficava, ‘tenho que exorcizar essa tristeza um pouco, então vou gravar’. Falei pro John, ‘faz um arranjo bem bonito, bem elegante, que essa música mereça’. Aí gravei, mas esta é a minha música preferida dela. Gostei bastante do arranjo, achei que ficou bem... a intenção, o John foi muito feliz [risos].” Corações Vazios “‘Corações Vazios’ foi feita este ano, foi feita um pouquinho antes da gente começar a gravar. Foi uma das mais novas, talvez. E ela ganhou uma aceitação pra gente ainda mais forte, porque, com a pandemia correndo solta assim, essa urgência que as pessoas têm, de precisar ter dinheiro pra comer, que é o que tá acontecendo, né? As pessoas não têm trabalho, os trabalhos precários ficaram piores ainda, ela fala exatamente sobre isso, essa urgência que as pessoas têm e que muita gente não vê. As pessoas estão sem bebida, sem comida, sem poder ter higiene, então acho que esta é uma música bem pandêmica. As pessoas chegam ao limite de ficar sem comida, sem poder viver, é a exacerbação, às vezes, da violência. E é duro você ver as pessoas não dando a mínima pra isso, não percebendo o tanto que tá sendo difícil na cidade ou na floresta, pras pessoas que estão muito vulneráveis, a vulnerabilidade de saúde, de meios, né? Em todo o mundo você tem lugares precários assim, mas quando junta uma pandemia e você junta o desinteresse público, isso fica muito grave. Isso pode entornar o caldo. As pessoas perdem a razão. Acho que é meio isso, a gente não pode perder a razão.” O Que Ninguém Diz “‘O Que Ninguém Diz” é uma canção minha e do Climério Ferreira. O Climério é um poeta do Piauí, de quem eu já tinha gravado uma canção que se chama ‘Quase Desatento’, no meu disco Na Medida do Impossível (2014), uma música que é minha, da Marina Lima e dele. O Climério é um poeta que já fez música pra Edgardo, Dominguinhos, sabe? É um senhorzinho, mas ele é tão perspicaz com os versos. Ele sempre me manda vários versinhos por e-mail, são quase haikais assim, bem pequenininhos, e a gente até virou amigo. Ele mora em Brasília hoje, é professor na universidade, e quando tem show lá, ele sempre vai me visitar. E ele sempre vai me mandando esses versinhos e até já escrevi apresentação de livro dele; vez por outra ele lança umas coletâneas dessas poesias dele. E toda vez que leio essas poesias, falo, ‘isso é letra de música, tenho que pegar, tenho que fazer’. Fiz isso na primeira vez com ‘Quase Desatento’ e chamei a Marina pra me ajudar a terminar a música. Dessa vez peguei um outro livrinho dele, mais recente, e comecei a escrever, separar versos, que fizessem sentido numa música. Aí peguei os versos dele e fiz essa música. É uma música sobre os mistérios do amor, né? Os mistérios do amor têm a parte boa, mas têm parte que é até sacanagem, né? Essa coisa de cair em tentação, não sei o quê… Acho legal o jeito como ele brinca com essas coisas assim, essa sensação de ninguém me quer, não vou amar, ele tem um humor minimalista. Aí fiz e mandei pra ele. Falei, ‘Climério, vê se você reconhece o seu filho, que nós tivemos juntos e você nem tava sabendo’ [risos]. Aí mandei pra ele já com arranjo, com tudo pronto, fiz a música, peguei os versos dele, fiz alguns versos a mais, mas mandei pra ele com tudo. Ele falou: ‘Nossa, que susto que você me deu, mas eu adorei’. Ele é muito engraçado. Falou: ‘Poxa vida, achei que você ia me mandar um negócio meio embrionário, e o menino já tá andando, né?’ [risos]. Quando comecei a fazer com o John a parte do arranjo, falei: ‘John, quero um negócio um pouco climático, mas que tivesse um pouco de Oriente, sabe’. Um baixo bem marcado. E aí a gente foi nessa pegada, bem climática e tem uns instrumentos que aparecem ali que remetem ao Oriente mesmo. A imagem que me veio, quando fiz essa música, ela tinha que ter um clima meio misterioso, e o Oriente tem esse negócio, né?” Love Song “A Maki [Nomiya] tem uma carreira solo, mas todo mundo se refere a ela como Pizzicato Five, não tem jeito. Ela é muito conhecida. E a gente tem feito algumas coisas, ela já veio pra cá cantar comigo; quando vou ao Japão ou ela canta também, faz uma participaçãozinha ou ela vai me ver. Virou uma amiga, ídola assim, porque eu adoro o trabalho do Pizzicato Five e gosto muito dela cantando. Tudo o que ela canta é muito bom, muito bonito, muito bem cantado. Ela é tipo ídola máxima mesmo, e é uma pessoa muito legal, muito acessível, tranquila. A gente fez até um EP juntas [Maki Takai No Jetlag, de 2009], mas ele só saiu no Japão. São seis músicas que a gente fez juntas. E esta música é uma composição minha e do John, e ela fez a versão em japonês. Tinha feito esta música pra comemoração das relações entre o Brasil e o Japão, e foi o pedido de um cônsul japonês, há alguns anos, mas nunca lancei esta música. Acho ela uma festa assim, inclusive no disco ela é a música mais pra cima, pra dar um pouco de esperança, né? Fala sobre essa relação, que é uma relação de amor, de quem tá com esse fuso gigante de 12 horas, alguém que tá no Brasil e a outra pessoa no Japão, onde é tudo invertido, né? Quando você acorda, a outra vai dormir, a outra vai trabalhar você vai dormir, é tão distante. E a gente fala disso, que ao mesmo tempo é tão longe, mas é tão perto, né? Que a gente consegue até fazer música junto e gravar. Ela mandou a voz dela lá de Tóquio pra cá, e o mundo realmente parece que encolhe, né? Mas adoro esta música, porque a gente fez e não lançou. Foi bem no intervalo de discos. Eu não ia gravar disco, ela também não ia fazer nada, aí depois já tava com o repertório do Inhotim programado, depois fui gravar ‘O Tom da Takai’ e não cabia em lugar nenhum. Não lancei como single, [então] falei, ‘vou botar no disco’. Acho que ela dá um pouquinho de luz, um pouquinho de positividade no disco. Só que ter a Maki cantando comigo no disco é um luxo, né? [risos]” Who Are You? “A história desta música é a seguinte: fiz esta música pra trilha do Alice no País das Maravilhas, do Giramundo. Essa trilha do Giramundo, a maior parte das músicas são do John, mas tem três músicas que fui eu que fiz e na peça não sou eu que canto. Esta música ‘Who Are You?’ quem canta é um narrador, que é um ator, e no disco quem cantou foi o John. Então nunca gravei. Adoro esta música justamente porque ela tem essa coisa de Massive Attack com Portishead, que adoro. Falei, ‘John, carrega mesmo nessa sensação que ela tem’; é meio fim de mundo, né?. Inclusive, tem uns sons que parece que são os Dementadores, do Harry Potter, vindo pegar a gente aqui. É uma mistura dessas referências todas, de um pós-mundo, né? E a letra dela é baseada nos textos do Lewis Carroll. Dos encontros da Alice com a lagarta. Que a lagarta pergunta, ‘e aí, você vai crescer ou diminuir? Você tá pronta pra sair? Você quer ficar?’. E ela é baseada nesse diálogo e ela tem a ver com o mundo, com hoje também, né? Olha o tanto de gente que tá mudando, que vai mudar, talvez pra sempre, a vida depois dessa pandemia. As empresas estão mudando de tamanho. Muita gente tá mudando de função, muita gente perdeu função. Assim, quem somos nós hoje, especialmente no Brasil, que sofre além da crise da saúde, com a crise política mesmo, como é que a gente vai sair dessa? Então ela tem um tom um pouco angustiado. E ela sendo em inglês, as pessoas ouvem no mundo inteiro. Gosto disso, porque sempre acabo colocando canções em inglês, e essa como é uma canção minha também e tem muito a ver com este momento, desta angústia mundial coletiva, acho que ela é bem representativa de todos nós, sabe? Fiquei muito na dúvida se invertia a ordem, se colocava ‘Love Song’ no fim, pra gente acabar pensando, ‘não, vai dar tudo certo, vai ser uma festa’. Porque ‘Love Song’ é superpositiva, né? Mas aí pensando bem, falei, ‘não, vamos encarar a realidade, a realidade de que vai ser muito difícil, está sendo e vai ser muito difícil daqui pra frente’. Mas acho que de alguma forma, a própria beleza do arranjo industrial ali, tudo dela, ainda dá um respiro, sabe? É o respiro de que é possível você criar na dor, você criar na dificuldade, criar num momento nublado. É possível você fazer coisas bonitas. Ela não deixa de ser uma música bonita, só que mais angustiante, mais pesada, mas existe beleza nesse momento, então acho que tem que buscar isso.”

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