Ira

Ira

Após 13 anos, o Ira! lança o seu 12º trabalho autoral, “Ira”, assim mesmo, sem exclamação. Nome que retoma o inconformismo dos primeiros anos da banda, na década de 80, e que combina com tudo que o Brasil (e o mundo) está passando neste momento. “A gente não tinha bola de cristal quando resolveu dar esse nome, a gente não sabia desta quarentena, não sabia da força desta pandemia, mas acho que ele tem um valor agora”, explica o guitarrista Edgard Scandurra ao Apple Music. “Quando a gente fica acompanhando informações, notícias, o inconformismo toma conta de todo mundo, pelo menos das pessoas que têm senso crítico. Acho que é uma coisa que está dentro de todos nós, cada um dentro de sua casa acompanhando estas loucuras que estão acontecendo por aí, acho que é o sentimento mais forte dentro de todo mundo.” Gravado e mixado no estúdio A9 Audio, em São Paulo, entre o final de 2019 e início de 2020, “Ira” tem dez faixas, produção de Apollo 9 e participação especial da amiga de longa data Virginie Boutaud (ex-Metrô), que canta versos em francês e assina “Efeito Dominó” ao lado de Edgard Scandurra. “Este álbum tem essa estética sonora, poética, que vai desde o nome do álbum até a capa, as faixas do álbum, tudo tem uma razão de ser e isso é uma coisa que acho muito importante na nossa carreira, que a gente consegue preservar, sabe?”, conta Scandurra, que destaca o fato de o álbum ser independente e trazer faixas longas, algumas com mais de oito minutos de duração. “Nós cuidamos do trabalho do começo ao fim, né? Teve o Apollo também, do lado da gente nesse ponto, que não foi aquele produtor que fica olhando para a música e pensando na execução dela na rádio. Não que isso não seja importante, tanto que a gente tem versões menores de algumas músicas para poder tocar nas rádios. Mas essa liberdade que a gente teve é um ponto positivo para o Apollo.” O trabalho também marca a consolidação e o entrosamento da nova formação do Ira!, que, além de Nasi e Scandurra, agora conta com Johnny Boy (baixo) e Evaristo Pádua (bateria), músicos que já tocavam com a banda em suas últimas turnês. “Isso foi muito bom para a gente, poder ir para o estúdio com o Johnny e com o Vara, ter esse espírito de banda com eles também. Não tem aquela coisa de músicos contratados que gravaram músicas, a gente tem uma banda que gravou o álbum inteiro”, afirma Edgard Scandurra, que pretende levar o Ira! para uma nova geração de admiradores: “A tendência é você ficar vivendo do seu passado e isso é uma coisa que me incomoda muito, nunca foi meu objetivo de vida descansar, sentar em cima do meu sucesso e ficar vivendo apenas dele. Ainda temos muitas provocações a fazer, e este álbum é o retrato disso”. Abaixo, Edgard Scandurra comenta cada uma das faixas de “Ira”: O Amor Também Faz Errar “‘O Amor Também Faz Errar’ segue uma linha de letras de músicas do Ira! como, por exemplo, ‘Vivendo e Não Aprendendo’, em que a gente vai na contramão de alguns provérbios, alguns ditados. Dizer que o amor também faz errar é um jeito de reconhecer que na nossa vida também, eu estou me pondo nesse lugar e penso que o Nasi também vai se identificar com isso, a gente viveu uma vida amorosa com vários altos e baixos, muitos acertos e erros, com casamentos, separações e com novas descobertas. É um hino à liberdade, de você poder se entregar a um amor. É reconhecer que, às vezes, a paixão pode não ser uma coisa eterna, que o amor não é para sempre, reconhecer que as descobertas são muito importantes na vida da gente. Também é mostrar o amadurecimento de uma pessoa. Acho que quem viveu na estrada do rock ’n’ roll, com a solidão da estrada, longe das nossas famílias, das nossas esposas, dos filhos, tem uma vida muito louca, né? Acho que é o reconhecimento de que às vezes nem tudo dá certo, mais ou menos isso.” A Nossa Amizade “É uma música de amor, que fiz inspirado em uma garota que conheci mais ou menos nos anos 90. Eu morava numa quitinete no centro da cidade e uma garota morava dois andares acima, ela era muito bonita, muito simpática. Uma noite, tive a coragem de bater na porta da casa dela, do apartamento dela, e me apresentar. Falei que ela era linda, conversamos e tudo, ficamos muito amigos, e a minha investida terminou numa grande amizade. Então é inspirado nisso, já tinha o esboço dessa letra desde aquela época e vinha trabalhando sempre, sabe, uma vez por ano pegava esta música e trabalhava, até que achei uma melodia muito linda que combinou com a letra, e é uma das minhas músicas favoritas do álbum. Ela tem uma linguagem que eu acho que, para quem gosta do Ira!, chamando o Ira! de uma banda mod, como The Who, como The Jam, The Chords, como já foram os The Beatles numa época, [The Rolling] Stones, como foi o Small Faces, ela tem toda essa linguagem, com um quê de anos 60 e essa sinceridade da letra. Acho a poesia muito bonita, um pouco ingênua, é um caminho que o Ira! já trilhou em outros álbuns. Tem uma linguagem juvenil. Acho muito legal esse som.” Respostas “É uma música que eu tocava com a Silvia Tape. Tenho um projeto com ela chamado EST e a gente tocava essa música. O EST não foi muito para frente, a gente fez alguns shows para o lançamento do álbum, depois deu uma parada em função do Ira! ter voltado para a estrada e tudo mais. Achava que essa música ficaria muito boa na voz do Nasi. A letra é da Silvia e acho que este ponto de vista feminino me interessou muito para este álbum, sabe? Ter esse lado poético feito pelas mulheres, achei interessante ter essa música, pois ela tem uma letra bem simbólica que fala sobre anjos, fala sobre o céu, faz parte de tudo, das coisas como elas são. Ela tem um sentido… como posso dizer, quase surrealista, e, com todo o peso que a música tem, ela pode virar um grande clássico do Ira!, com certeza.” Mulheres à Frente da Tropa “‘Mulheres à Frente da Tropa’ tem inclusive um videoclipe que é um dos melhores que o Ira! já teve, feito pela Luciana Sérvulo. O videoclipe e a letra mostram esse protagonismo feminino, muitas questões sociais, muitos ativismos, enfrentando a opressão, a repressão, enfrentando a violência, os preconceitos, os machismos, o passo a passo da mulher para conquistar uma posição de igualdade com o homem, esta música é sobre isso. A presença das vozes femininas nos vocais dá um toque maravilhoso nela, e elas ficam não só nas vozes, mas também nas cordas. Um dos músicos dos cellos, das cordas que temos na música, também é uma mulher. A capa deste nosso álbum é uma mulher que está fazendo. Essa é uma música bem simbólica do tom que eu quis dar ao álbum, que é esse ponto de vista da mulher no nosso trabalho, sabe? O ponto de vista da mulher numa banda masculina como o Ira!, numa banda de muita testosterona, de muitas histórias de drogas, sexo e rock ’n’ roll, depois de um tempo, quando a gente reconhece que o valor da mulher é muito mais do que essa coisa estereotipada que às vezes a música e o rock passam.” Você me Toca “‘Você me Toca’ também é mais uma música minha com a Silvia Tape. É uma música que a gente nunca tocou, esta nunca foi para o EST, ficou simplesmente uma composição que a gente tinha, que a letra tinha muito a ver com o Nasi e com a sonoridade da banda. Uma música muito bem resolvida no quarteto, guitarra, baixo e batera, um tremendo rock ’n’ roll, como ‘Resposta’ também. Acho que é uma das melhores interpretações do Nasi no álbum, tem esta sensualidade na letra, um refrão muito forte, que, apesar de toda a sensualidade, eu não acredito mais em você. Um significado muito louco, que as pessoas… Acho que cada um vai ter uma ideia sobre isso, mas a sonoridade, o rock, o tamanho, o solo, tudo, acho que é uma das músicas mais bem resolvidas do álbum. Lembra algumas outras músicas nossas, me lembra ‘Rua Paulo’, tem músicas que são muito parecidas, me lembra ‘Vitrine Viva’, que também tem um pouco essa pegada. Ia falar que era a música mais legal, mas todas são legais. É que ela tem um momento muito importante, no momento em que ela entra, ela dá um realce, uma pegada muito forte no estilo do Ira!. Quem gosta da gente vai gostar muito desta faixa.” Efeito Dominó “Uma balada muito chique, né, très chic. A letra é minha, e a música é da Virginie Boutaud. Esta letra acho que vai nesse ponto, justamente nessa coisa que tem a ver com a primeira música, ‘O Amor Também Faz Errar’. Conta a história de um cara que teve um grande desamor na vida, um grande amor que não deu certo. Ele, sem querer, acaba se vingando desse único grande amor que teve nos novos romances que ele tem pela frente. Então acaba descontando o fora que levou nas outras pessoas que ele vai conhecendo pelo caminho. No caso, não só namorada, como namorado, porque na música a Virginie canta também o outro lado, da mulher cantando para o homem, ou da mulher cantando para mulher. Mais ou menos essa é a história da música. Esta letra tem um realismo um pouco triste, um pouco deprê, mas que combina muito com a música, com o fato de ela ter uma parte cantada em francês. Tenho muita influência da música francesa, já tive projetos cantando músicas do Serge Gainsbourg. Tem uma característica da música francesa que é esse realismo, sabe? Que não é sempre uma coisa alto astral, não é sempre uma coisa vitoriosa, positiva, tem essa mão na consciência de reconhecer erros. Procurei mais ou menos isso, inspirado já na possibilidade de fazer um trabalho com a Virginie. A parte que ela canta ficou maravilhosa, linda é uma das grandes músicas do Ira! — literalmente, ela está com quase oito minutos, se não me engano. Então se conta uma história toda nela, com muita calma, um excelente solo de guitarra, a timbragem dela tem várias características das músicas românticas, os breques, as chamadas de bateria, o solo de slide, o vocal da Virginie, até o do Nasi também que dá um peso, uma vivência na música. Uma música que tem que ser cantada por pessoas com mais de 50 anos, que já tiveram uma vivência que é retratada nas interpretações.” Chuto Pedras e Assobio “Mais uma menina que entrou no álbum, que é a Bárbara Eugênia, uma parceria minha com ela. Esta música, em princípio, foi criada quando produzi o segundo álbum da Bárbara, mostrei esta música, e ela já tinha um repertório meio fechado. Então ela me ajudou a completar algumas palavras na letra, nos versos, e a gente acabou estabelecendo esta parceria. Essa música tem uma coisa muito legal, fala da solidão de uma pessoa que também tem otimismo, que acredita que ainda vai encontrar o grande amor de sua vida. Uma pessoa que valoriza muito as suas lembranças, que é uma coisa que combina muito com estes tempos em que a gente está vivendo agora na quarentena. A impressão que tenho é que a quarentena está muito ligada ao nosso passado, quando estamos cada um na sua casa, pensamos no nosso passado, na liberdade que já tivemos, nas vivências todas, no nosso presente, como estamos agora e como o futuro é totalmente incerto. Então vejo esta música com essa coisa legal, este ar não só nostálgico, mas também positivo, feliz pelas experiências adquiridas no passado.” Eu Desconfio de Mim “Quando a gente fez esta música no estúdio, um pouquinho antes, tinha visto o show do Gang of Four aqui em São Paulo e foi um show espetacular, o som não estava lá muito bom, mas fiquei muito emocionado, foi a terceira vez que vi show do Gang of Four. O Ira! teve uma fase pós-punk, que não foi registrada em vinil, foi em 83 e 84, com o Charles Gavin e o Dino no baixo, e o Gang of Four era uma grande influência para a gente, não só o Gang of Four, mas tinham outras bandas da época também, Killing Joke, Siouxsie & the Banshees. Muitas bandas com essa linguagem pós-punk que eram espetaculares, um momento revolucionário dentro do rock na parte mais cerebral, mais minimalista e isso acabou entrando nesta música. Mais ou menos na época em que a gente estava gravando este álbum, foi que o Andy Gill faleceu. Acaba sendo uma homenagem não só ao Andy Gill, mas também a toda essa época, essa geração dos anos 80 que foi meio obscura do pós-punk, o New Order… Foi muito importante para o começo do Ira!, Legião Urbana, para Fellini, paras as bandas em que eu tocava. Mercenárias, Smack, Cabine C, e o Ira! era uma delas. A estranheza musical, os solos não só virtuosos, as sensações diferentes, essas foram coisas que a gente botou nesta música. Esta letra, vamos dizer que é o patinho feio do álbum. O álbum todo tem uma linha de inconformismo, uma linha política, e esta música tem uma certa crítica, quando ela fala ‘eu não sei dizer não’, é muito a cara de uma geração, uma geração que viveu em busca do prazer, com muitos excessos. Pessoalmente, os anos 90 foram para mim anos muito fortes disso daí, da vida noturna, dos excessos. Era muito comum você ouvir uma pessoa falar, ‘eu não pude fazer nada, a pessoa botou uma bala na minha boca’. Isso é muito a cara de uma geração inteira que viveu assim e se inspirou por não dizer não aos excessos. Isto também é uma crítica a este momento em que a gente está vivendo, tudo o que a gente precisa saber é dizer não. É muito importante você saber dizer não. Esta música fala na primeira pessoa, eu não sei dizer não, mas na verdade é uma crítica muito forte a um modo de agir da sociedade, de não se saber dizer não. Tem este lado crítico, que é quase satírico.” O Homem Cordial Morreu “‘O Homem Cordial Morreu’ é uma letra que acho muito legal, primeiro ela fala de uma mudança... O resumo dela é que, se as pessoas querem uma mudança na sociedade, elas têm que começar a mudar a si mesmas primeiro. Então no começo ela fala em aprender a respirar, pensar nas coisas, não tomar nenhuma atitude impensada, não ser intempestivo em alguns momentos, em certas coisas. Olhar com outros olhos o que podia ser banal, como fala a letra, prestar atenção em todas as coisas, porque as coisas às vezes passam batidas na vida da gente, e os pequenos detalhes são importantes. Reconhecer que não basta você ficar mais velho, você tem que aprender com as experiências que você viveu. De repente, essa é uma resposta para nós mesmos, a gente já tem um álbum que se chama ‘Vivendo e Não Aprendendo’ (1986), esta música vem para dizer que está na hora de aprender. Existe um momento na juventude em que você é rebelde, você não quer aprender as coisas que estão querendo te ensinar, você quer experienciar outros caminhos, faz parte de uma descoberta. E este é o momento da vida em que você tem que aprender com seus erros e acertos, você está aprendendo a viver. E, de repente, a letra passa desse lado pessoal e introspectivo de olhar para dentro de si, para um momento de reconhecimento no plano nacional quando diz ‘o homem cordial morreu’. Esta é uma referência ao homem cordial que era falado, se não me engano, pelo pai do Chico Buarque de Holanda. Havia essa expressão do homem cordial, uma visão de que o brasileiro é um homem cordial, que recebia bem as pessoas, que era era educado e sempre alegre. Sérgio Buarque de Holanda que tinha essa referência de o homem brasileiro ser receptivo, do samba, da alegria, do carnaval. E, na verdade, a gente vê um país que é trilhado por golpes de estado, por revoluções, por assassinatos, por muita violência. Então é uma lenda essa história do homem cordial. Essa é uma coisa que a gente tenta abordar nesta música e tenta levar essa revolução interna para o externo. Quando você fala: se eu entrincheirar contra o opressor, que eu tenha gente comigo que também pense como eu.” A Torre “Os versos são uma brincadeira, a mesma coisa se repete o tempo todo, tem um truque poético no alto da torre, na calada da noite, eu posso ver ao mesmo tempo que você, fica mais ou menos em torno disso a letra toda. O aspecto maior dela acho que é o seu instrumental. Da metade para o fim, ela tem essa pegada mais pós-punk mesmo. Tem este solo do além, que ninguém sabe o que é isso [risos]. Esta música tem uma certa latinidade, e é importante ouvir a percussão. Ela tem uma percussão muito bonita. Como ‘Mulheres à Frente da Tropa’ que tem percussão também. Tem algumas músicas do álbum que eu toco tímpanos e eles imprimem um ar sinfônico. A gente foi gravar lá no Auditório Ibirapuera. Esta música tem um vocal maravilhoso da Nina Estricnina, que é uma menina da Espanha. Ela gravou da Espanha com iPhone e mandou para a gente. Ficou maravilhoso o solo vocal que tem nesta música. Ela era uma cantora de flamenco quando começou aqui no Brasil, lá pelos anos 90, e essa latinidade toda me inspirou a fazer esse solo. Eu queria ter uma característica meio latina, um pouco Santana, um pouco Dire Straits. Tem um gongo maravilhoso do percussionista uruguaio Jorge Peña. Foi legal, pois ele puxa na percussão dele elementos mais latinos, ele tem uma coisa afro, uma percussão bem afro-latina, dessa latinidade do Uruguai, que está no jeito que ele toca. Tipo ‘Mulheres à Frente da Tropa’, que tem esse lado de música revolucionária, de música de protesto, como em outras músicas também. ‘O Homem Cordial Morreu’... ‘A Torre’ tem uma levada de conga da metade para o fim que é maravilhosa, muito suingada. Acho que é uma música que a gente pode tocar para um público que nunca a ouviu antes e as pessoas vão dançar e curtir pra caramba, sabe?”

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