

O prazer da pianista Alice Sara Ott em ter “descoberto” John Field fica evidente em sua contagiante empolgação ao relembrar a primeira vez que ouviu sua música: “Era uma música que eu desconhecia completamente, mas, ainda assim, havia algo nela que me parecia familiar e nostálgico”. Durante o isolamento da pandemia de Covid-19, Ott, que se sentia “muito frustrada”, decidiu explorar um compositor de quem ouvira falar, mas que ainda não conhecia: “Eu pensei que os Noturnos de Field combinariam com o meu estado de espírito, mas acabou sendo algo mais inspirador – eu simplesmente não conseguia parar de sorrir enquanto ouvia a música”, ela conta ao Apple Music Classical. John Field (1782-1839) é um pianista e compositor irlandês de grande reputação, principalmente por ter criado o noturno, um gênero hoje consolidado na música para piano. Para Field, que fez carreira na Europa e especialmente na Rússia czarista, o noturno era o veículo ideal para a sua interpretação poética e, ao mesmo tempo, clara e acessível. O noturno foi desenvolvido pelo compositor polonês Frédéric Chopin, cuja contribuição para o gênero foi gravada por inúmeros pianistas. Mas a música de Field não pode ser vista apenas como um mero prenúncio da obra de Chopin, como Ott percebeu quando ouviu pela primeira vez as composições do irlandês. “Eu não conseguia encaixá-la em uma época específica. Não sabia se era música clássica do século 18 ou romântica do século 19, porque alguns dos Noturnos de Field soavam como Mozart ou como se fossem de um Beethoven mais jovem”, explica. Apesar da comparação, os Noturnos de Field possuem uma mágica própria – se revela de forma universal, como Ott descobriu ao apresentá-los no Japão. “Eu estava muito nervosa”, ela relembra, “porque parecia que eu ia estrear uma peça contemporânea que ninguém jamais tinha ouvido. Provavelmente 99% do público nunca tinha ouvido falar de John Field. Eu observava a plateia enquanto tocava e as reações eram as mesmas que eu tive: eles simplesmente começaram a sorrir do começo ao fim.” Dado o estilo direto e aparentemente despretensioso dos Noturnos de Field, qual seria o segredo de seu apelo aparentemente universal? “Quase todos eles começam de uma forma muito simples e o ouvinte é levado a pensar que se trata de uma música com uma estrutura igualmente simples. Mas ele consegue surpreender com uma mudança harmônica ou rítmica. E ele domina a arte da ornamentação como ninguém – para mim, nem Chopin chega perto.” De fato, grande parte do fascínio pelos Noturnos de Field está na ornamentação quase improvisada com que ele os decora, o que representou um grande desafio para Ott. “Eu tive que me dedicar muito mais a isso do que se estivesse tocando, por exemplo, a ‘Sonata’ de Liszt [notoriamente virtuosa], que, de alguma forma, considero mais fácil para mim fisicamente. Com todas as ornamentações de Field, há várias possibilidades [de interpretação] e, dependendo da escolha, isso tem um grande impacto no tom emocional da obra. Eu experimentei inúmeras maneiras de tocar esses ornamentos, e tentar encontrar o jeito certo para mim nem sempre foi fácil.” Ott passou a apreciar ainda mais a música de Field à medida que mergulhava na história do pianista. “Na época dele, todo mundo comentava sobre o quão ele era impressionante como intérprete”, diz Ott. “Pela ornamentação, você percebe que ele era um mestre do improviso.” Para Ott, a música de Field também é especial pelos sentimentos profundos revelados. “Quase todo noturno dele começa de forma muito inocente, quase ingênua”, diz ela. “Então ele cria uma magia em meio compasso, onde você percebe uma melancolia profunda. É como se você passasse por uma janela e percebesse, para além do vidro, uma emoção – que pode ser tristeza ou melancolia –, mas sem conseguir compreender completamente a complexidade e a profundidade dela. Isso dura apenas meio compasso, e depois o sol volta a brilhar.” Então, quais noturnos Ott sugeriria para dar uma ideia da diversidade de Field? Ela cita instantaneamente como “um dos meus favoritos absolutos” o N.º 10, o comovente e melódico “Nocturne Pastorale” em mi maior. E com o tempo, ela passou a apreciar também o N.º 16 em dó maior: “É um dos noturnos mais longos e no começo eu pensava: ‘Ah, ele tem muitas seções, não sei como fazer essas partes funcionarem juntas’. Para mim, ele é como uma ópera, porque revela diversas variações emocionais. Você apresenta cenas diferentes e, de repente, entra uma cantora, que poderia ser Cecilia Bartoli, cantando uma ária de coloratura ou no estilo barroco. E então a peça volta a ser, mais uma vez, tipicamente pianística. É cheia de mudanças – e é isso que eu adoro.”